Quanto mais longe das águas frias do Atlântico, mais negra fica a África. Ao cruzar a divisa do estado Western Cape em direção a Eastern Cape, observa-se o peso da cultura Xhosa. É nessa região onde está concentrado o maior número de falantes do idioma e adeptos da cultura, cerca de 6 milhões (3/4 do total). Por aqui se pode ver uma paisagem que alterna constantemente entre o verde vivo das montanhas e a vegetação rasteira e ressecada das savanas. Da janela do ônibus, zebras e os espertos babuínos(1) embelezam a estrada ao longo da famosa Garden Route. Seguindo ainda na mesma direção, passando de Port Elizabeth e East London, encontramos o vilarejo de Qunu (foto), distrito de Umtata, onde Nelson Mandela nasceu e foi criado. Logo nas primeiras cidades que surgem ao chegar em Kwazulu-Natal, já se pode perceber a diferença na estatura do povo. Mais altos e esguios, os zulus são maioria no estado e somam 9,6 milhões em todo o país. Contornar o sul do continente africano em duas semanas é uma tarefa injusta com a cultura local, principalmente quando as paradas acabam sendo em acomodações próprias para receber turistas, ainda que sejam albergues. Mas de vez em quando se consegue uma prosa mais espontânea e menos engessada, “para inglês ver”. A África tem sim a marca forte do seu colonizador. Nas mansões de frente para o mar e na opressão racial. Não é difícil visitar esse país no esquema enlatado das agências de turismo onde você se hospeda em resorts e come bem pagando
Prosa de gente grande
Em março de 2010, Dona Joey completa 80 anos. “Mas não parece, não é, jovem?”, perguntou logo que chegou, mostrando as conchinhas que catava na praia. Puxou uma parte da minha canga, sentou-se e engatou a prosa. “Eu adoro fazer amizade e me corresponder com as pessoas. Você está sozinha? Posso sentar aqui com você? Eu adoro escrever cartas. Depois você me dá seu endereço e a gente pode trocar correspondências, o que você acha?”
Antes de perguntar de onde eu era, perguntou qual era minha língua mãe e deduziu que eu era de Portugal. Começou a contar uma história que eu não consegui entender muito bem sobre uma garota que se perdia na praia, perto de Lisboa e depois ninguém nunca mais achava. No meio da conversa disse que eu era do Brasil e ficou surpresa: “Nossa, do outro lado do oceano Atlântico? Longe. Eu nunca troquei cartas com ninguém do Brasil”. Sorri e ela continuou a falar da sua vida.
Trabalhou de escrivã judiciária e recepcionista em um prédio comercial. Teve dois maridos. “Um morreu em 1966, com problemas nas veias da cabeça (eu acho que foi um derrame). O outro em 85. Fumava demais, o pulmão não agüentou.” Teve duas filhas. Uma mora
Dona Joey falava mais do que eu. Usava chapéu de palha sintética e calça de pano comprida para proteger a pele branca do sol escaldante. Quando perguntei a ela das lembranças que tinha do Apartheid, me disse que não gostava. No Fórum onde trabalhava ela tratava bem tanto os brancos como os negros. “Eu gosto de fazer amizade com todo mundo. Às vezes eu ia lá na cozinha e conversava com os negros. Todo mundo gostava de mim. No edifício a mesma coisa. Eu trabalhava com o público, tinha que conversar com as pessoas”. Quando disse a ela que era jornalista me perguntou se eu queria escrever um livro. Fiquei sem reação. “Talvez... Quem sabe quando eu tiver da sua idade, com mais experiência e histórias para contar”, respondi.
É apaixonada por animal de estimação. “Tive um papagaio que falava Afrikaans e Inglês, mas não gostava de mulher não. Sempre me bicava quando eu me aproximava. Quando era homem ele não fazia nada”. Agora tem um labrador na casa da filha. “Ele se chama Sebastian, mas só entende inglês”. Quando sua filha Christine chegou com o amigo futuro padre de Jeffreys Bay, me despedi da família. Dona Joey me abraçou e disse que me escreveria primeiro e esperaria ansiosa a resposta da mais nova amiga que fizera, que mora do outro lado do oceano Atlântico. “Uma vez troquei cartas com um amigo da Alemanha. Acho que foi o lugar mais longe que escrevi. Mas agora tem você no Brasil”.
Buraco da Fechadura
(1) Quando estive no Cabo da Boa Esperança pude entender exatamente o motivo da plaquinha: Perigo! Babuínos são atraídos por comida. Assisti uma família de babuínos roubarem uma maça e um saco de marshmallow das mãos da dona. Foi hilária a cena. Minha colega ficou muito assustada. Quando viu os babuínos se aproximarem, ela nem tentou esconder. Entregou as comidas e satisfez o desejo dos macacos que rapidamente se desfizeram dos sacos e devoraram os doces e a maçã.
(2) Cerca de
Piscinas naturais em Coffee Bay