terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Depois daquela tormenta...








Feira de estrada é um negócio que vinga no mundo todo. Pelo menos por onde andei sempre vi umas bugigangas na beira da pista. Um pivete vendendo frutas, uma senhora com uns bordados, um hippie com uns cachimbos ou um artesão com uns penduricalhos. Por aqui não é diferente, mas o que primeiro se vê, de longe, são as zebras, os leopardos, os jacarés e as vacas estendidas num enorme varal, como se ainda vivessem, presos num simples pregador de roupa. Os 15 comerciantes que se amontoam no acostamento da Victória Road(1) não escolheram o lugar por acaso. Mercedes e conversíveis param a todo instante na piçarra que resvala o asfalto antes de chegar as primeiras lonas com as mercadorias vindas, a maior parte delas, da periferia de Cape Town. Quadros, pinturas em tecido, cerâmicas, artigos de couro, pedras preciosas, conchas, cestas de palha, trabalhos em madeira, arames e lataria, coca-cola gelada, uma vista de tirar o fôlego e um sol de rachar a cabeça nesta época do ano. Com exceção da segunda-feira, está tudo ali durante toda a semana, das 8 às 17 horas. “Depende também do vento e das tempestades. Em geral, a gente olha na TV a previsão. Mas às vezes a gente arrisca montar alguma coisa pela manhã. Se começa a ventar, desmonta”, explica o garoto responsável pelo único isopor cheio de refrigerantes da feira.

Os ventos pelas bandas de cá são bem diferentes das brisas serenas que estou acostumada a sentir no Ceará. Aqui ele faz a curva. Agora eu entendo porque o português Bartolomeu Dias batizou o extremo sul da África de Cabo das Tormentas quando chegou as Índias, antes do rei Dom João II chamá-lo de Cabo da Boa Esperança. Na feira, a história do vento contada por Greg Jooste justifica a atual locação dos feirantes. Segundo o vendedor de peles de animais que tem sua “barraquinha” ali há 9 anos, foi uma tormenta na década de 80 que fez os vendedores que existiam na época recuarem até o ponto onde eles hoje se abancam para reconstituírem o espaço dos negócios. Ninguém sabe ao certo de quanto tempo foi a pausa entre a dispersão causada pela tempestade e o surgimento do novo comércio. Greg só tem a certeza de que quando ele chegou no local já tinha gente vendendo mercadorias e se adiantou: “Desde o começo eu fui organizando esta feira. Está vendo aqueles banheiros ali? Fui eu que coloquei. Cada um me paga uma taxa por mês aqui para eu cuidar do espaço. Mantenho limpo e organizo o local das barracas”. O homem branco certamente já passa dos 50, tem a pele marcada do sol e exerce a função de líder ali entre a maioria de negros jovens.




Victória Road




Exportando arte de periferia


Com o rosto escondido num chapéu de pano para se proteger do sol, Zodwa concentra-se no oficio diário de decorar as Tongas Basckets e atender aos turistas que chegam constantemente. Somente Zodwa, sem sobrenome. Lábios carnudos e sorriso marcante. A fala é mansa e pausada, típica de quem não tem o inglês como idioma oficial e teve que aprender para trabalhar. Aos 34 anos está ali na feira todos os dias, representando sua comunidade, Khayelitsha(2). Sua língua é o Xhosa(3). Domina também Zulu. Traz trabalhos de primos, irmãos e vizinhos para a gringalhada ver e comprar. Pele de bicho não. Sabe que para fazer estas peças – refere-se a mercadoria dos colegas – não se aproveita a pele de animais que morrem. Sabe bem que é preciso matá-los. Seu talento é outro. A menina mexe nas Tongas feitas pela mãe. Os cestos de palha de bambu já vêm pronto do estado vizinho, Eastern Cape. Tem de todo tamanho. A aprendiz orna os objetos com miçangas coloridas, como a mãe lhe ensinou.
Enquanto descreve o bairro e o lugar onde mora, Zodwa me puxa pela mão e me leva até a lona onde estão expostos os trabalhos de seu irmão mais novo. “Olhe! Assim são nossas casas, assim é nosso bairro. São chamadas de sharcks. Estou esperando uma casa do governo. Uma casa mesmo, de concreto. Acho que a gente da seção B deve receber as casas só em 2011. Quem sabe até o final do ano. Não sei, estou esperando.” Em Khayelitsha vivem aproximadamente 2 milhões de pessoas. A maioria das casas são feitas de madeira e até mesmo de papelão.
Entre um norueguês e um britânico que chega interessado nos trabalhos de Zodwa, ela me diz de seus medos com toda a calma do mundo. “Nas horas livre eu gosto mais de ficar em casa assistindo filme. Eu tenho um DVD, fico conversando com minha irmã, é mais seguro. Em Cape Town se você está na rua de noite e um homem desconhecido pede o seu telefone, você tem que dar, porque você não sabe o que ele pode fazer com você. E algumas vezes eles não são tão educados assim...”.




Zodwa trabalha sobre as Tongas Basckets feitas de palha de bambu


Buraco da fechadura

1 – Victoria Road é uma das estradas mais bonitas de Cape Town. Ela margeia o oceano Atlântico passando pelas praias mais ricas da região e pela famosa montanha dos 12 apóstolos. A estrada dá acesso ao caminho que leva até o Cabo da Boa Esperança. A feira se localiza logo depois de Camps Bay, entre as praias de Bakoven e Llandudno.

2 – Khayelitsha está para Cape Town assim como Soweto para Johannesburg. Aproximadamente 90% da população é negra. O restante é mestiça. Zodwa disse que no bairro dela tem cabeleireiras boas no trançado. Disse que me levaria por lá, durante o dia, é claro.

3 – Xhosa é uma das 11 línguas oficiais da África do Sul. Aproximadamente 8 milhões de pessoas falam o idioma. É a mais fácil de reconhecer quando os nativos estão falando porque eles estalam a língua no céu da boca, fazendo um barulho engraçado. Nas topics é a língua que mais se escuta entre os motoristas e os trocadores. Inclusive, vale algumas linhas sobre o transporte público aqui de Cape Town. É bastante deficiente. A maioria das topics e o trem só funcionam até o começo da noite, tipo 20 horas. Para o bairro onde moro, Walmer Estate por exemplo, a última sai às 18h30. E não é distante, é apenas um bairro residencial que não fica no centro, nem nas praias ricas. Taxi não é muito caro, mas você acaba escravo deles.


Família vende roupas de crochê há dois anos na Feira

3 comentários:

  1. Adorei as matérias. Conhecer a Africa dos sul pelos seus olhos e repleto de detalhes e informações preciosas está sendo uma maravilha! Que venha mais!

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  2. Muito boa a perspectiva que tem sobre as coisas observa.. Continuo acompanhando.

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  3. luminosa trajetória mia linda!
    como gostaria de sair por aí também agora!
    mas, estarei acompanhando-a!
    beijaefetuosoabraço!

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