Refazer os caminhos que marcam nossa história é um exercício muito interessante. Depois de muitos anos voltei a uma parte do litoral cearense que habita minha memória de forma viva: das praias de Aracati até Icapuí, foram muitas de minhas férias correndo na areia, descobrindo fontes, falésias, acampando em coqueirais, subindo morros e apreciando muitos crepúsculos naqueles vilarejos. Fui a Majorlândia, praia onde passei a maior parte do tempo quando adolescente. O lugarejo localiza-se vizinho a famosa Canoa Quebrada. Fui até Ponta Grossa, dessa vez para conhecer o modelo de turismo comunitário, bem desenvolvido na praia. Dei uma paradinha em Redonda também, num reencontro de afetos com meu pai e sua filha, que já completou 10 anos. Em Barreiras de Sereia, foram quatro dias, numa casa alugada com uns amigos. Nesses dez dias de transição entre 2011 e 2012, eu me deparei com situações surpreendentes, principalmente quando diz respeito aquilo que mais me intriga nesse mundo: as pessoas. Encontrei gente que eu não via há 10 anos, amigos pescadores, dono de bar, familiares e gente nova. Estas, sim, são as responsáveis por presentificar e atualizar a minha relação com cada lugar, até então tão ligada às memórias nostálgicas da infância e adolescência.
Numa caminhada despretensiosa dos últimos dias de 2011, visitei uma falésia alta e bonita, formação comum na região de Icapuí. Saí de Barreiras de Sereia em direção a falésia que se avistava de longe, na direção oeste. O que eu não sabia é que eu estava indo em direção ao vilarejo de Vila Nova, ao encontro de uma pedra que guarda a famosa lenda da sereia de Icapuí. Acompanhada do meu namorado, Diogo, fomos até lá, fotografamos, aproveitamos a paisagem e voltamos, já depois do sol. Com a iluminação comprometida, caminhamos pela areia fofa entre as jangadas e a maré alta, que insistia em nos refrescar os pés, no vai-e-vem das águas. A praia estava completamente deserta, quando avistamos uma mulher sobre uma jangada, de pernas cruzadas em posição de meditação. Seus cachos loiros mexiam-se indisciplinadamente com a força do vento, cobrindo parte de seu rosto, que parecia sorrir em direção ao mar. Continuamos caminhando. Na penumbra da noite recém chegada, com olhos de soslaio, Diogo me perguntou ressabiado se eu também tinha visto uma mulher sentada ou se ele tinha visto “coisas”. Ri e respondi que sim, havia uma moça na jangada que acabávamos de cruzar. Olhar para trás não adiantava, a escuridão tomava conta.
Dois dias depois, sou abordada pela artista plástica argentina Paula de Deus, divulgando seu trabalho, na pracinha de Icapuí.
– Oi, vocês querem conhecer meu trabalho? Eu estava meditando na praia e vi vocês voltando lá da pedra da sereia, em Vila Nova. Gostaria de apresentar meu trabalho para vocês, baseado na lenda. Vocês foram até a pedra?
Eu olhei com cara de interrogação para a menina e disse que não sabia do que se tratava, mas me interessei pelo assunto.
Paula de Deus me explicou sobre o projeto Hino do Planeta que reúne vários artistas em torno de uma única causa: a vida no planeta. E, para ela, tem tudo a ver com a lenda da sereia de Barreiras. Músicos de várias partes do Brasil estão reunidos para propagar o amor a vida, a importância da natureza nessa ligação divina e a valorização da cultura nordestina. Com CD gravado, camisas desenhadas, telas e quadros pintados, o projeto Hino do Planeta propõe uma militância em torno do amor a vida e a arte. Músicos e grupos como Pingo de Fortaleza (CE), Tribo do Sol (BA), Ukiemana (MG) e Udiyana Bandha (GO) apoiam a causa e estão envolvidos na divulgação do projeto. A idéia é organizar um grande encontro artístico em 2014, aproveitando o contingente humano que estará no Ceará devido a Copa do Mundo e chamar atenção para a arte que é produzida no estado e no Brasil. Será um encontro nas imediações do Castelão que trará a mensagens de amor, paz, união através de várias manifestações artísticas.
Eu confesso que gostaria de ter tido mais tempo conversando com Paula de Deus. Ler os textos contidos no CD que adquiri e o blog do projeto não foi suficiente para captar de fato a relação da lenda da sereia de Barreiras com o nascimento do projeto. É uma associação que não consegui fazer. Mas fiquei bem curiosa e decidi divulgar a iniciativa que prega o amor e a arte.
Pelo que entendi, a lenda da sereia entra na história como uma metáfora de reflexão sobre a vida. As pessoas da região contam sobre uma sereia que morava num reino encantado. Ela foi aprisionada com seus tesouros dentro da pedra e está a espera de alguém que quebre o feitiço e a liberte. Na pedra existe uma pegada e se o pé de alguém couber na marca, a sereia será libertada.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, em dezembro de 2011, quando conseguiu levar seu trabalho como artista plástica para uma exposição no restaurante Alma Gêmea, em Fortaleza, Paula de Deus disse que a lenda faz uma referência a relação do ser humano com a água e suas próprias origens. E questionou: “Será que estamos realmente cumprindo nossa missão na Terra?". Esse foi o mote da reflexão para a criação do projeto Hino do Planeta.
Como artista plástica, Paula de Deus tem um trabalho louvável. O traço dela me fisgou. Ela desenha e pinta bem melhor que escreve em português. Parte de sua obra pode ser vista em seu blog, onde descreve e divulga o projeto Hino do Planeta. http://paularespiradedeus.blogspot.com e http://hinodoplaneta.blogspot.com/