terça-feira, 2 de março de 2010

Em direção ao Índico



Quanto mais longe das águas frias do Atlântico, mais negra fica a África. Ao cruzar a divisa do estado Western Cape em direção a Eastern Cape, observa-se o peso da cultura Xhosa. É nessa região onde está concentrado o maior número de falantes do idioma e adeptos da cultura, cerca de 6 milhões (3/4 do total). Por aqui se pode ver uma paisagem que alterna constantemente entre o verde vivo das montanhas e a vegetação rasteira e ressecada das savanas. Da janela do ônibus, zebras e os espertos babuínos(1) embelezam a estrada ao longo da famosa Garden Route. Seguindo ainda na mesma direção, passando de Port Elizabeth e East London, encontramos o vilarejo de Qunu (foto), distrito de Umtata, onde Nelson Mandela nasceu e foi criado. Logo nas primeiras cidades que surgem ao chegar em Kwazulu-Natal, já se pode perceber a diferença na estatura do povo. Mais altos e esguios, os zulus são maioria no estado e somam 9,6 milhões em todo o país. Contornar o sul do continente africano em duas semanas é uma tarefa injusta com a cultura local, principalmente quando as paradas acabam sendo em acomodações próprias para receber turistas, ainda que sejam albergues. Mas de vez em quando se consegue uma prosa mais espontânea e menos engessada, “para inglês ver”. A África tem sim a marca forte do seu colonizador. Nas mansões de frente para o mar e na opressão racial. Não é difícil visitar esse país no esquema enlatado das agências de turismo onde você se hospeda em resorts e come bem pagando em dólar. Certamente, estes viajantes encontrarão negros somente para lhes servirem e desperdiçarão a chance de andar pelas ruas e ver a vida passar. Pletemberg Bay é uma praia que representa bem este perfil. Turismo forte de terceira idade e grandes hotéis de luxo (2). Velhinhos brancos em busca de calor, sombra e água fresca. E nada mais além disso.


Casarões em Plettemberg Bay


Prosa de gente grande



Jeffreys Bay: top five do surfe mundial. Maiores ondas, melhores esquerdas e melhores tubos. Essa é a informação comum que qualquer apaixonado por praia sabe sobre este pico. Mais um paraíso natural da costa sulafricana. Ok, comprovado. Mas o curioso é descobrir muito mais em míseros dois dias de parada. Em minha estada por lá, encontrei um jovem que estuda para ser padre na escola de formação de sacerdotes de Jeffreys Bay, amigo de uma família que há três anos mudou-se para a cidade em busca de qualidade de vida. Nas folgas em comum de seus respectivos ofícios, costumam passear na praia e catar conchinhas. Dona Joey Booyse é uma vovó linda aposentada nascida no Zambia, que trabalhou no Zimbabwe e sente saudade mesmo é de New Castle, cidade localizada perto de Durban, no estado de Kwazulu-Natal, onde morou boa parte de sua vida na África do Sul. “Vim para cá porque minha filha não queria que eu morasse sozinha lá em Natal. Ela acha que eu estou velha. No começo eu fiquei triste porque deixei meus amigos, mas agora eu gosto.”


Em março de 2010, Dona Joey completa 80 anos. “Mas não parece, não é, jovem?”, perguntou logo que chegou, mostrando as conchinhas que catava na praia. Puxou uma parte da minha canga, sentou-se e engatou a prosa. “Eu adoro fazer amizade e me corresponder com as pessoas. Você está sozinha? Posso sentar aqui com você? Eu adoro escrever cartas. Depois você me dá seu endereço e a gente pode trocar correspondências, o que você acha?”


Antes de perguntar de onde eu era, perguntou qual era minha língua mãe e deduziu que eu era de Portugal. Começou a contar uma história que eu não consegui entender muito bem sobre uma garota que se perdia na praia, perto de Lisboa e depois ninguém nunca mais achava. No meio da conversa disse que eu era do Brasil e ficou surpresa: “Nossa, do outro lado do oceano Atlântico? Longe. Eu nunca troquei cartas com ninguém do Brasil”. Sorri e ela continuou a falar da sua vida.



Trabalhou de escrivã judiciária e recepcionista em um prédio comercial. Teve dois maridos. “Um morreu em 1966, com problemas nas veias da cabeça (eu acho que foi um derrame). O outro em 85. Fumava demais, o pulmão não agüentou.” Teve duas filhas. Uma mora em Johannesburg. Esta visita pelo menos duas vezes por ano. E a outra em Jeffreys Bay, com quem mora atualmente. “Aqui a casa da minha filha é feliz. Ela tem quatro crianças. Eu gosto daqui. Dia de quarta tem umas atividades na praia para gente de todas as idades. Eu faço massagem, jogo cartas. Mas sempre que posso volto em Natal para visitar minhas colegas. Sinto falta de lá também”.


Dona Joey falava mais do que eu. Usava chapéu de palha sintética e calça de pano comprida para proteger a pele branca do sol escaldante. Quando perguntei a ela das lembranças que tinha do Apartheid, me disse que não gostava. No Fórum onde trabalhava ela tratava bem tanto os brancos como os negros. “Eu gosto de fazer amizade com todo mundo. Às vezes eu ia lá na cozinha e conversava com os negros. Todo mundo gostava de mim. No edifício a mesma coisa. Eu trabalhava com o público, tinha que conversar com as pessoas”. Quando disse a ela que era jornalista me perguntou se eu queria escrever um livro. Fiquei sem reação. “Talvez... Quem sabe quando eu tiver da sua idade, com mais experiência e histórias para contar”, respondi.


É apaixonada por animal de estimação. “Tive um papagaio que falava Afrikaans e Inglês, mas não gostava de mulher não. Sempre me bicava quando eu me aproximava. Quando era homem ele não fazia nada”. Agora tem um labrador na casa da filha. “Ele se chama Sebastian, mas só entende inglês”. Quando sua filha Christine chegou com o amigo futuro padre de Jeffreys Bay, me despedi da família. Dona Joey me abraçou e disse que me escreveria primeiro e esperaria ansiosa a resposta da mais nova amiga que fizera, que mora do outro lado do oceano Atlântico. “Uma vez troquei cartas com um amigo da Alemanha. Acho que foi o lugar mais longe que escrevi. Mas agora tem você no Brasil”.



Buraco da Fechadura


(1) Quando estive no Cabo da Boa Esperança pude entender exatamente o motivo da plaquinha: Perigo! Babuínos são atraídos por comida. Assisti uma família de babuínos roubarem uma maça e um saco de marshmallow das mãos da dona. Foi hilária a cena. Minha colega ficou muito assustada. Quando viu os babuínos se aproximarem, ela nem tentou esconder. Entregou as comidas e satisfez o desejo dos macacos que rapidamente se desfizeram dos sacos e devoraram os doces e a maçã.


(2) Cerca de 700 quilômetros depois de Pletemberg Bay, bem próximo do município de Umtata, o turismo de Coffee Bay é exatamente o oposto desse luxo e mordomia. Com apenas três backpackers (espécie de albergue mais sofisticados, com opções de quartos individuais por preços acessíveis), o vilarejo praiano ainda é preservado do assédio turístico massivo, apesar de receber gente de toda parte do mundo. A maioria jovem. Talvez pelo difícil acesso, Coffee Bay é aconchegante e oferece ao visitante um contato forte com a cultura local Xhosa. Aqui não se vê branco ou mestiço. Quando aparece algum, já se sabe que não é local, ainda mais quando o idioma falado não é o Xhosa. O inglês aqui é símbolo do dinheiro. Só se recorre a ele para vender artesanato de miçanga aos gringos ou apresentar a batida dos drums numa “noite de música Xhosa” no backpack X ou Y. O lugar é paradisíaco. Selvagem. Cobras e lagartos são comuns. A presença de muitas vacas nos pastos que rodeiam o vilarejo faz com que a oferta de magic mushroom seja grande no mercado informal. Também se ganha dinheiro com isso por lá. É fácil ver as vaquinhas tomando banho de sol na areia da praia. Lugarzinho muito especial. Água morna, piscinas naturais e águas claras. Povo simpático e acolhedor. Barulho de grilo e cheiro de mato.



Piscinas naturais em Coffee Bay

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Enxame do Jogo Alheio

Brasileiro faz barulho em todo canto. Imagine quando o assunto é futebol. Normalmente só anda em bando e fazendo enxame. Se bem que concorrer com as vuvuzelas sulafricanas não é fácil. Mas é claro que quando esse brinquedinho cai nas mãos da brasileirada a zoada é grande. Duas horas antes do jogo de inauguração das novas instalações do Green Point Stadium – novinho em folha, pronto para a Copa – já se via torcedor se aproximando do estádio. Vermelho, Ajax; Amarelo, Santos. As duas cores predominavam entrem os torcedores, mas de vez em quando se via um são paulino ou um corinthiano entre os 20 mil torcedores que conseguiram ingressos. Todos esgotados uma semana antes do jogo, era possível ver retardatários tentando comprar tickets na hora (1). Mas o comércio de ingressos fora da bilheteria não era tão às vistas como no Brasil. Um magrelo olha para os dois lados e, disfarçadamente, pega três folhinhas de papel na pochete presa no cós da bermuda, enquanto conversa com três garotos. Entrada garantida. Um outro tem um livro na mão com um único ingresso dentro e pede por ele 4 vezes o preço vendido na semana anterior. O movimento é dissimulado. A cavalaria da polícia está em frente o estádio para controlar confusões. Fecham os olhos para a ação dos cambistas, que trabalham sob o sol, discretamente. Diferente dos dias de jogos no Castelão ou no PV(2), aqui no Green Point Stadium não se vê um ambulante sequer, vendendo uma água mineral ou uma bandeirinha. “É proibido. Depois da reforma, você encontra tudo que precisa nos quiosques dentro do estádio. Tanto comida como roupas e acessórios. O comércio informal atrapalha a entrada e a saída dos torcedores do estádio. Assim fica mais organizado”, explica Wynand Du Toit, 38 anos, chefe de segurança do estádio.


Copa é diversão

“Eu tenho direito a quatro ingressos por jogo. Vai ser bom demais. Nessa época eu vou tirar férias. Estarei aqui como torcedor. Não quero trabalhar não. Na Copa eu estarei me divertindo!”. O chefe de segurança do jogo de abertura do Green Point Stadium estava ali na labuta, mas garante que em junho será só diversão. No jogo de abertura, que recebeu menos de um terço da capacidade total do estádio, Wynand Du Toit tinha uma importante função para uma das principais cidades da Copa do Mundo 2010. “Meu papel aqui é avaliar e sugerir soluções e alternativas para aprimorar esse tipo de serviços em eventos de grande porte.” Aos olhos de quem já trabalha no ramo desde 1999, aquele jogo foi tranqüilo, sem brigas e seguro. Mas falta identificação para o torcedor no interior no estádio. Informações sobre como se locomover: entradas, saídas, banheiros, lojas.

Naquele último dia 23, o Santos levou a melhor. Meteu seis na rede e levou 5. Segundo a maioria dos brasileiros, foi um jogo feio. 90 minutos sem grandes emoções. Nenhum gol. O jogo foi decidido nos pênaltis. Para o chefe de segurança, o resultado também refletiu num bom dia de trabalho. Fácil de avaliar as falhas na estrutura do estádio e um bom número de pessoas convencidas de um resultado não muito massacrante. “Equilibrado”, segundo Wynand.

“São 480 seguranças ao todo. 40 em cada uma das três entradas, com 11 portões cada”. Com os números na ponta da língua, o chefe de segurança explica parte de seu trabalho na prática, mostrando o fluxo de pessoas que deixam o estádio: “Olhando eu posso calcular por estimativa. Saem 400 pessoas por minuto. Logo, se são 20 mil pessoas, em uma hora o estádio estará vazio. É assim que eu trabalho. Para esse fluxo de pessoas não é necessário abrir todos os portões. Aqui agora, por exemplo, temos cinco abertos e seis fechados, entende?”, questiona.


Vuvuzela na cabeça

O som das cornetas se escutava muito além das imediações do estádio. O vento forte de Cape Town levava a sinfonia até a praia de Green Point, logo ali perto. Para alguns torcedores e muitos funcionários, o brinquedinho é sinônimo de dor de cabeça e incômodo. Wynand acredita que pode ser positivo para os jogadores. Uma forma de estímulo na hora de ganhar uma partida. “Quando eu jogo rúgbi, por exemplo, eu adoro escutar torcida. Você se sente motivado. Mas quando estou trabalhando, eu tenho dor de cabeça com o som das vuvuzelas. É barulho demais!”

O mesmo estádio de futebol também é palco de rúgbi. Esse sim é o esporte preferido de Wynard. Para jogar e para trabalhar. “Mas depende. Alguns são melhores que outros, não tem regra. Depende de várias coisas: do humor da gente, do dia, da vibração do momento.” Durante a semana trabalha também como chefe de segurança num campo de Golf em Stellenboch (3). De vez em quando pega alguns eventos extras. “Mas quando pega todo o fim de semana é muito ruim. Porque tenho o meu trabalho durante a semana e, às vezes, pego esses eventos para quem eu presto consultoria. O fim de semana é o tempo que eu tenho para me divertir. Acabo dormindo muito pouco, quando tenho que trabalhar. Depois do evento eu ainda saio e tenho que ficar com minha família também, minha esposa, meus dois filhos”, queixa-se.

Torcida do Santos comemorando a vitória


Buraco da Fechadura

1 -Eu fui uma das retardatárias que estava lá, tentando comprar tickets na hora. Claro que eu não consegui entrar. Não estava disposta a pagar um ingresso tão caro. O papo foi bom com o segurança.

2 - Quilômetros antes dos portões do estádio Castelão já se pode ouvir os cambistas gritando: “Ó o ingresso, ingresso, ingresso”. Ou mesmo dias antes na porta do shopping Benfica, onde se localiza a loja dos torcedores que vendem os ingressos. Em dias de clássicos como Ceará e Fortaleza, sempre tem um baixinho de boné vendendo um ingresso extra, sem muito pudor. Futebol combina com cerveja gelada. Essa premissa faz com que todos os bebedores de cerveja que freqüentam os estádios de futebol em Fortaleza amem os ambulantes. Com o isopor apoiado no ombro, eles vão passando no meio do furdunço gritando: “cerveja, cerveja, cerveja”. No Castelão assisti cerca de quatro jogos e pude acompanhar bem esse movimento. No PV eu nunca entrei, mas acompanhei durante cinco anos que estudei no Benfica o que acontece com o entorno do estádio em dias de jogo. Tem barraquinha de cachorro quente em todo canto. Não consigo imaginar essa lei funcionando no Brasil. Imaginem proibir os ambulantes nos estádios? Acho que os torcedores não iam gostar nadinha.

3 - Stellenboch é uma região próximo a Cape Town onde se encontram grandes vinícolas.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A cidade que dorme

Restaurante de comida Etiópia na famosa Long Street

Cape Town é uma cidade que respeita o descanso. Quando é hora de fechar as portas, elas fecham. Talvez pelo hábito ainda do toque de recolher que existia no Apartheid, o comércio encerra o expediente às 17 horas. Durante a madrugada, é raro o bar que excede às 2 horas da manhã. A cidade tem uma organização peculiar. Às vezes me parece um tanto quanto caótica, mas segue alguma lógica comum apenas entre os locais. Para turista, um mês de adaptação é pouco para entender o funcionamento da cidade. É o bondinho da Table Mountain que tem promoção na sexta feira para estudante, mas eventualmente não funciona por causa do vento forte. Ou mesmo aquela depois das 18 horas: ticket pela metade do preço, mas não está escrito em lugar nenhum e você só descobre casualmente depois que já comprou os dois trechos do Cable Car(1) pelo dobro do preço. Garçom por aqui sabe fazer conta melhor do que muito matemático. Quando solicitado, ajuda com competência qualquer jornalista a dividir a conta. Se der na cuca do manager, hoje simplesmente não funciona. Resolveu viajar com a família e deu folga aos funcionários.Taxista é um negócio curioso. Não conhecem bem a cidade. É comum eles se perderem. Ande sempre com um mapa e, se possível, explique o caminho do seu destino. Cada empresa tem sua tabela. O mesmo trecho pode variar em até ZAR 70 (2). Enquanto você não conhece o trecho, deixe o taxímetro rolar para se ter base de negociação da próxima vez. Aliás, certifique-se que a empresa que você escolheu utiliza taxímetro porque algumas têm uma tabela aí muito doida com uma base de cálculo estratosférica com logarítimo e raiz quadrada não sei da onde. Se cair nessa, é melhor não tentar entender, pague.


É comum ver um gringo desavisado, apreciador de cerveja, tendo problemas com a polícia. Aqui é proibido o consumo de bebida alcoólica na rua. Nos supermercados, somente os bons vinhos africanos (booooons mesmo). O agito da cidade é comedido, mas há. Não conheço ninguém que leve daqui desgosto. Aos brasileiros (ou mesmo os italianos) mais ávidos por uma vida urbana ativa, sugiro exercitar a paciência. Um pôr do sol na praia de Clifton pode ser suficiente para se entender o ritmo da cidade. Pode ser do Lions Head também, depois da escalada não muito suada até o topo da montanha. Do lado de cá do Oceano Atlântico, se pode ver o mar apagar o sol todos os dias, somente às 20 horas da noite. Não é raro golfinhos e focas embelezarem o final de tarde.

A fuleragem é bem parecida

A língua inglesa aqui está bem distante daquela coisa fria de britânico, embora tenha sido eles a colonizarem estas terras depois de brigarem bastante com os holandeses. Dizer que é brasileiro soa bem por aqui. Sinto uma certa identificação entre os povos. Acho que dividimos algumas coisas como a violência, a pobreza, o bom humor das pessoas, a receptividade, a alegria. A fuleragem (como se diz no meu Ceará). A fuleragem é bem parecida. O povo aqui fala alto que nem a gente, ri do tombo alheio e convida pra tomar um café em casa no dia seguinte que o encontrou.

Outro dia minha amiga Thereza e eu conhecemos uma mulher incrível no churrasco do colombiano que divide casa com um alemão e uma sulafricana em Observatory (3). Aliás, duas. Uma era do Quênia, com quem conseguimos conversar horas e horas sobre nossa visão de África, a mobilidade dos africanos entre os países desse continente e as facilidades de adaptação meio as diferenças culturais de cada povo (isso em inglês não foi fácil). A outra, parecia uma “enviada”. Quando Thereza e eu entalávamos e não conseguíamos explicar determinada idéia, devido aos impasses da língua, ela conseguia sabiamente desengasgar nosso inglês de aprendiz. Detalhe: Sharon não entende nada de português, sua língua mãe é o Xhosa, fala inglês e entende de expressão humana como ninguém. Transita tanto que aprendeu a ler a mente através o corpo. Minha amiga Thereza acha que pode ser carma, coisa de outra vida. Eu não sei. Prefiro acreditar que são surpresas da convivência com uma cultura vasta que, em 45 dias, não conseguirá mostrar o tamanho da sua diversidade para uma gringa qualquer. Mas continuará dando dicas, dia após dia.

Buraco da Fechadura

1 – Cable Car é como eles chamam o bondinho. Em nossa primeira tentativa de pagar menos para fazer o tal do passeio cartão postal de Cape Town, Thereza e eu rachamos o um taxi e fomos feliz da vida até o pé da montanha, onde fica a estação do bondinho. Demos com os burros n´água. Algumas pessoas já havia nos dito que às vezes o bondinho não funcionava devido aos ventos fortes típicos de Cape Town. Como aquela sexta feira nos parecia calma e de ventos brandos, arriscamos. Chegamos lá às 15h30 e encontramos uma porção de funcionários alegres e satisfeitos indo embora mais cedo pra casa. Tem coisa melhor do que sexta feira o expediente acabar mais cedo? “Desculpem, mas a partir de agora só desce. Não queremos colocar a vida de ninguém em risco”. Resultado: não tem nada que convença minha amiga do contrário de que toda sexta feira aparece um vento forte e o Cable Car não funciona. Mas que coisa, não? Justo na sexta feira e logo no dia da promoção para estudante? Voltamos no domingo e pagamos ZAR 160, ida e volta. Quando estávamos no topo, encontramos um colega que mora aqui e ele deu a dica: “espera passar das seis que vocês compram o bilhete de volta pela metade do preço”. Pronto! Foi a última coisa que eu precisava ouvir. Final das contas: fiz o passeio maravilhoso, mas paguei o maior valor possível. Fazer o que...


2 – A moeda da África do Sul é o Rand (ZAR). A cotação fica em média R$1 para cada ZAR 3,5. As coisas aqui não são caras quando se pretende morar na cidade. Mas quando o assunto é turismo as coisas mudam. Todo passeio para turista acaba saindo muito caro. Os restaurantes famosos que sai na revista de viagem então, meu deus! O mais absurdo que achei foi o África Café. Tentei ir, mas desisti na porta quando soube que não poderia ir para petiscar ou tomar um drinque. Como o restaurante estava lotado demais só recebiam pessoas para jantar. ZAR 225 por pessoa. Até o Waterfront, ex cais revitalizado com bares, lojas, shopping e restaurantes é mais democrático. De vez em quando se pode assistir a uma apresentação de música de graça no anfiteatro.


3 – Observatory é um bairro mais alternativo e fica bem próximo da Universidade. Muito estudante mora lá e a arquitetura antiga das casas segue um padrão similar. Outro dia fui até a rua que se diz badalada e achei bem sombria. Sexta-feira, às 22 horas, não me senti muito convidada a flanar pela rua e pular de bar em bar. Muitos fechados (inclusive o famoso bar dos brasileiros que aos sábados toca samba e servem feijoada). Vale o passeio durante o dia ou quem sabe num evento específico em um dos muitos bares que a rua tem. Talvez por aqui seja mais comum as “festinhas no AP”.
Greenmarket: feira no Centro de Cape Town

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Depois daquela tormenta...








Feira de estrada é um negócio que vinga no mundo todo. Pelo menos por onde andei sempre vi umas bugigangas na beira da pista. Um pivete vendendo frutas, uma senhora com uns bordados, um hippie com uns cachimbos ou um artesão com uns penduricalhos. Por aqui não é diferente, mas o que primeiro se vê, de longe, são as zebras, os leopardos, os jacarés e as vacas estendidas num enorme varal, como se ainda vivessem, presos num simples pregador de roupa. Os 15 comerciantes que se amontoam no acostamento da Victória Road(1) não escolheram o lugar por acaso. Mercedes e conversíveis param a todo instante na piçarra que resvala o asfalto antes de chegar as primeiras lonas com as mercadorias vindas, a maior parte delas, da periferia de Cape Town. Quadros, pinturas em tecido, cerâmicas, artigos de couro, pedras preciosas, conchas, cestas de palha, trabalhos em madeira, arames e lataria, coca-cola gelada, uma vista de tirar o fôlego e um sol de rachar a cabeça nesta época do ano. Com exceção da segunda-feira, está tudo ali durante toda a semana, das 8 às 17 horas. “Depende também do vento e das tempestades. Em geral, a gente olha na TV a previsão. Mas às vezes a gente arrisca montar alguma coisa pela manhã. Se começa a ventar, desmonta”, explica o garoto responsável pelo único isopor cheio de refrigerantes da feira.

Os ventos pelas bandas de cá são bem diferentes das brisas serenas que estou acostumada a sentir no Ceará. Aqui ele faz a curva. Agora eu entendo porque o português Bartolomeu Dias batizou o extremo sul da África de Cabo das Tormentas quando chegou as Índias, antes do rei Dom João II chamá-lo de Cabo da Boa Esperança. Na feira, a história do vento contada por Greg Jooste justifica a atual locação dos feirantes. Segundo o vendedor de peles de animais que tem sua “barraquinha” ali há 9 anos, foi uma tormenta na década de 80 que fez os vendedores que existiam na época recuarem até o ponto onde eles hoje se abancam para reconstituírem o espaço dos negócios. Ninguém sabe ao certo de quanto tempo foi a pausa entre a dispersão causada pela tempestade e o surgimento do novo comércio. Greg só tem a certeza de que quando ele chegou no local já tinha gente vendendo mercadorias e se adiantou: “Desde o começo eu fui organizando esta feira. Está vendo aqueles banheiros ali? Fui eu que coloquei. Cada um me paga uma taxa por mês aqui para eu cuidar do espaço. Mantenho limpo e organizo o local das barracas”. O homem branco certamente já passa dos 50, tem a pele marcada do sol e exerce a função de líder ali entre a maioria de negros jovens.




Victória Road




Exportando arte de periferia


Com o rosto escondido num chapéu de pano para se proteger do sol, Zodwa concentra-se no oficio diário de decorar as Tongas Basckets e atender aos turistas que chegam constantemente. Somente Zodwa, sem sobrenome. Lábios carnudos e sorriso marcante. A fala é mansa e pausada, típica de quem não tem o inglês como idioma oficial e teve que aprender para trabalhar. Aos 34 anos está ali na feira todos os dias, representando sua comunidade, Khayelitsha(2). Sua língua é o Xhosa(3). Domina também Zulu. Traz trabalhos de primos, irmãos e vizinhos para a gringalhada ver e comprar. Pele de bicho não. Sabe que para fazer estas peças – refere-se a mercadoria dos colegas – não se aproveita a pele de animais que morrem. Sabe bem que é preciso matá-los. Seu talento é outro. A menina mexe nas Tongas feitas pela mãe. Os cestos de palha de bambu já vêm pronto do estado vizinho, Eastern Cape. Tem de todo tamanho. A aprendiz orna os objetos com miçangas coloridas, como a mãe lhe ensinou.
Enquanto descreve o bairro e o lugar onde mora, Zodwa me puxa pela mão e me leva até a lona onde estão expostos os trabalhos de seu irmão mais novo. “Olhe! Assim são nossas casas, assim é nosso bairro. São chamadas de sharcks. Estou esperando uma casa do governo. Uma casa mesmo, de concreto. Acho que a gente da seção B deve receber as casas só em 2011. Quem sabe até o final do ano. Não sei, estou esperando.” Em Khayelitsha vivem aproximadamente 2 milhões de pessoas. A maioria das casas são feitas de madeira e até mesmo de papelão.
Entre um norueguês e um britânico que chega interessado nos trabalhos de Zodwa, ela me diz de seus medos com toda a calma do mundo. “Nas horas livre eu gosto mais de ficar em casa assistindo filme. Eu tenho um DVD, fico conversando com minha irmã, é mais seguro. Em Cape Town se você está na rua de noite e um homem desconhecido pede o seu telefone, você tem que dar, porque você não sabe o que ele pode fazer com você. E algumas vezes eles não são tão educados assim...”.




Zodwa trabalha sobre as Tongas Basckets feitas de palha de bambu


Buraco da fechadura

1 – Victoria Road é uma das estradas mais bonitas de Cape Town. Ela margeia o oceano Atlântico passando pelas praias mais ricas da região e pela famosa montanha dos 12 apóstolos. A estrada dá acesso ao caminho que leva até o Cabo da Boa Esperança. A feira se localiza logo depois de Camps Bay, entre as praias de Bakoven e Llandudno.

2 – Khayelitsha está para Cape Town assim como Soweto para Johannesburg. Aproximadamente 90% da população é negra. O restante é mestiça. Zodwa disse que no bairro dela tem cabeleireiras boas no trançado. Disse que me levaria por lá, durante o dia, é claro.

3 – Xhosa é uma das 11 línguas oficiais da África do Sul. Aproximadamente 8 milhões de pessoas falam o idioma. É a mais fácil de reconhecer quando os nativos estão falando porque eles estalam a língua no céu da boca, fazendo um barulho engraçado. Nas topics é a língua que mais se escuta entre os motoristas e os trocadores. Inclusive, vale algumas linhas sobre o transporte público aqui de Cape Town. É bastante deficiente. A maioria das topics e o trem só funcionam até o começo da noite, tipo 20 horas. Para o bairro onde moro, Walmer Estate por exemplo, a última sai às 18h30. E não é distante, é apenas um bairro residencial que não fica no centro, nem nas praias ricas. Taxi não é muito caro, mas você acaba escravo deles.


Família vende roupas de crochê há dois anos na Feira


A bola vai rolar no Green Point Stadium. No próximo dia 23 de janeiro, Ajax Cape Town enfrentará o Santos, marcando o primeiro jogo do ano nas novas instalações do Green Point Stadium. Depois da super reforma, o estádio terá a capacidade de receber 70.000 pessoas sentadas nos jogos da Copa do Mundo, a partir de junho. Mas para o clássico local dos times sul africanos serão vendidos somente 20.000 ingressos, com o objetivo de testar as novas instalações do espaço. A construção do estacionamento no entorno do estádio ainda não terminou. A previsão é que até o final do mês as obras estejam concluídas.




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