sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Santo com cara e coração de índio Chiapaneco




Antes de deixar a caótica San Cristóbal de las Casas e seguir para a Selva de Lancadona, decidimos visitar a cidade de onde todos os artesãos – sempre mulheres e crianças – que tentaram me vender algo diziam que vinham. San Juan de Chamula é, sem dúvida, o lugar onde a mistura religiosa entre a cultura do colonizador e as tradições locais se consumaram de forma mais mestiça. O povoado indígena sobrevive da agricultura e da venda de artesanato, principalmente em São Cristóbal de las Casas, onde o turismo é agressivo. O tzotzil (1) é o idioma mais falado – para muitos, o único. A língua do colonizador serve para tratar de ‘negócios’, seja com o turista ou com povoados vizinhos. Infelizmente, nas escolas só se aprende o espanhol, mas é clara a existência do idioma como mecanismo de resistência da tradição da cultura local. O tzotzil é ensinado em casa, de pai para filho. Não se escuta nenhuma criança falando o espanhol, a não ser com o estrangeiro. San Lorenzo de Zinacantan também está chido(2 ). Povoado indígena vizinho que guarda a tranquilidade total da vida campestre. Aqui, sim, sem quase nenhum sinal de turista na rua. Chamula, apesar de ser pacata, guarda sua veia turística em uma única rua, que se resume ao comércio e à curiosa e irreverente igreja.
Com traços indígenas em sua arquitetura, os rituais que lá se fazem estão longe de tudo que qualquer católico já viu. Aqui, a mestiçagem barroca se dá em seu termo mais complexo, onde santos vestem-se como índios, orações se encerram com tragos de posh (3) e coca-cola é objeto de oferenda dentro deste enorme templo que se chama igreja, que um dia foi ali construída por católicos colonizadores. Aqui, Deus escuta melhor as orações em tzotzil.
Do lado de fora, a placa escrita somente em espanhol - fato raro na cidade - é clara: proibido tirar fotos dentro da igreja. A presença do estrangeiro ali é constrangedora, mas é também uma maneira de fazê-lo deixar mais um dinheirinho para a sobrevivência daquele povo.
Do lado de dentro, milhares de velas acesas, um altar com vários santos vestidos de roupas indígenas, tecidos floridos para decorar o espaço, mato espalhado pelo chão da igreja, nenhum banco. Homens, mulheres e crianças oram e repetem o ritual. A presença dos turistas se dá de forma asquerosa ao invadir um momento tão precioso para aquele povo. Os olhares repressivos dos indígenas aos visitantes nos colocam, mais ainda, na posição de intrusos. Impossível não se sentir invadindo um momento singular da vida cotidiana daqueles mexicanos. Mas encontrei um lugarzinho discreto. Ali sentei e fiquei por, pelo menos, 40 minutos.
Três mulheres chegaram com seus sacos pretos, onde traziam as oferendas e os objetos para o ritual. Montaram as sequências de, aproximadamente, 50 velas aos pés de San Lucas, San Marcos e Santiago – todos vestidos com bordados indígenas locais – e iniciaram a oração. A jovem que vestia as comuns saias de lã de bode, blusa lilás e azul com bordados dourados e cabelos longos trançados, adornados com fitas e lã, puxou o pequeno ritual em tzotztil. Da bolsa, retirou uma garrafa de vidro cheia de posh, uma Mirinda de laranja e uma galinha branca viva e silenciosa.
A senhora, que estava do seu lado, parecia receber as orações que a jovem fazia. Retirou a galinha do saco e, em movimentos circulares, passou sobre a cabeça da mulher repetidas vezes. Acendeu a fileira de velas finas e compridas que faltava e orou por mais alguns minutos. Sobre o jogo de velas, também rodeou a galinha nas mãos da jovem. Depois, ergueu o animal para o alto e, como quem estica um elástico, agarrou o pescoço do bicho e o sacrificou. Cabeça para um lado e corpo para o outro. O bicho não emitiu um ruído sequer. Depois, o encostou ao lado das velas e continuou orando, enquanto o animal se debatia em seus últimos suspiros de vida. Depois, agarrou o objeto de madeira e soprou, fazendo o apito indígena cantar. A jovem retirou o casaco da senhora e fez a mesma coisa que fizera com a galinha: passou sobre a cabeça da senhora e sobre o jogo de velas, em movimentos circulares, como se evocasse uma espécie de benção para a dona daquela roupa. Pediu a ajuda da terceira mulher e salpicou um pouco da Mirinda sobre as velas, assim como uma dose, bem medida, de posh. Mais algumas frases em tzotzil e o arremate final. As três entornaram uma dose de posh e depois de algumas caretas, deu-se por encerrado o ritual. Parte das velas já se desmanchavam no chão da igreja e elas já conversavam entre si, num clima descontraído. Antes de começarem a recolher seus pertences dos pés daquele pequeno altar, riram um pouco, e logo deram espaço para os próximos rituais.



Buraco da Fechadura

(1) Tzotzil é o idioma indígena falado na região. Outro dia estávamos comendo em um dos restaurantes 'cult bacaninhas' da caótica São Cristóbal e Cláudia, uma pequena niña que nos insistia para comprar suas flores, dizendo que naquele dia não havia vendido nada, conseguiu nos emocionar. Depois de aceitar o nosso convite para sentar a mesa e comer um pouco de macarrão a bolonhesa ficou algum tempo calada, comeu, olhou para o céu e disse: "Daqui a pouco vai chover um pouquinho". Eu, Maíra e Nuno perguntamos como ela sabia, se o céu estava limpo e sem nuvens. Ela disse: "Porque sim, às vezes Deus chora só um pouquinho." Ficamos calados, com um nó na garganta e voltamos a comer. Em uma língua que ao invés de 'bom dia', seu povo pergunta 'como amanheceu seu coração?' espera-se muita sabedoria mesmo. E naquela madrugada choveu. Pouquinho, mas choveu.
(2) Chido está para os mexicanos como o legal para os brasileiros! Tudo para eles está chido. É muito bom ir descobrindo devagarzinho as expressões que identificam esse povo, orale! Cabrón é como o nosso 'de fuder', pode ser bom e ruim, depende do uso, assim como o chingón. Só vindo e ouvindo mesmo para entender!
(3) Aqui também se bebe cachaça. Aguardente de cana não é exclusividade nossa nem a pau. Aqui tem esse nome, posh. Mas é a 'merminha'!





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